quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Portugal



Ana:

Eu morria de saudades de um gaúcho por quem me apaixonei loucamente dois anos antes. Então, decidi aprender português para, de alguma forma, me sentir mais próxima dele. Esse, o gaúcho, era jogador de futebol quando namorou comigo. Anos depois, eu o reencontrei e descobri que, finda a carreira, tinha virado vendedor de enciclopédias. Antes que alguém me pergunte, já digo. Vendedor de Enciclopédia em pleno século XXI. Não é bizarro? Em plena era Wikipedia, acho que fiquei feliz que a história com esse gaúcho teve um ponto final. Repetindo o nome do blog, ponto final não é privilégio de histórias tristes.

Assim, naquele momento anterior às enciclopédias, quanto mais eu estudava português, mais minha paixão pelo gigante da América Latina crescia. Eu estava no nível 4 já quando o meu professor sugeriu que a gente tentasse, via internet, praticar o idioma com falantes naturais da língua. Não havia Facebook, mas a gente usava uma coisa muito estranha chamada Hi5. Um dia, achei um menino lindo. Lindo demais! Como o Orkut para alguns, o Hi5 denunciava quem olhava o seu perfil. Eu olhava o dele, ele olhava o meu, eu olhava o dele, ele me adicionou. Mensagens aqui e acolá, ele me deu o MSN e nós conversamos a conversar. Isto é, eu comecei a cumprir minhas tarefas escolares: praticar a língua com um falante natural de português.

Tudo começou assim. Ele era um português com olhos pretos, cabelos negros e que fumava demais como todo português que se preze. No primeiro dia, sem exageros, a gente conversou durante oito horas. No segundo dia, também. No primeiro final de semana, minha timidez não me impediu de ligar pra ele. O romance já tinha começado. Por três meses, nós nunca desligávamos o computador. Eu dormia olhando a tela do MSN, ele ficava acordado até às 3 horas da manhã para me ver. Tudo online: ele morando em Portugal e eu em Buenos Aires.

Meu aniversário é no dia 15 de janeiro. Ele quis porque quis passar comigo e, então, pagou uma passagem para que eu pudesse ir pra lá. Tirei passaporte, comprei malas novas, roupas novas, sapatos novos e fui. Atravessei o oceano.

Ao chegar, experiência complicada. Sentei com minhas malas num banco coletivo para localizar o endereço dele, guardar a passagem e me ver no espelho. Não era minha intenção parecer uma mulambenta. Ao meu lado, fazendo algo parecido, uma mulher, loira de meia idade, também se organizava. De repente, a mulher saiu e eu não vi para onde ela foi, mas vi que suas malas ficaram. No mesmo lugar, sentou um rapaz e, ao se levantar, levou consigo as malas dela. Naquele momento, eu, envolvida com meus próprios pensamentos, pensei que eram malas deles, do casal. Me enganei. Eis que surge a mulher, chorando, gritando em francês. Atrás dela, vários policiais. Todos falando em português de Portugal. Senti que três anos de curso de português tinham ido embora. Eu não entendia uma só palavra do que eles disseram e eles pareciam não me entender também. Minha chegada não foi nada fácil.

Ele se chamava João Jorge, mas não foi ele quem foi me buscar no aeroporto. Lá estava Carlos, cujo português me era completamente estranho também. Eu só fui reconhecer os sons, as palavras, os sentidos na boca do João Jorge, horas mais tarde, quando ele chegou em casa do trabalho. O primeiro beijo foi estranho. Ele me abraçou, me mostrou a casa e, quando chegamos no quarto, em frente à janela, olhou pra mim e me beijou com força. Minhas pernas tremiam de medo, estava aflita. Queria beijar ele, mas não sabia se ele também queria. Por que capricornianas sempre ficam com dois pés atrás?

A ideia era eu ficar em Portugal durante duas semanas, o que frustrou, ou pareceu frustrar o João Jorge. Ele queria que eu ficasse pra sempre, abandonando família e trabalho na Argentina. Foram duas semanas intensas, cheias de viagens, passeios ao sol fraco do inverno europeu, vinhos brancos e frutos do mar. Durante o dia, como ele trabalhava, eu ia ao cinema, passeava pelas lojas, visitava museus e igrejas, e tirava fotos. Muito atencioso, ele tinha organizado uma escala entre seus amigos. Eu nunca ficava sozinha. Me sentindo segura e, sobretudo, acolhida, aqueles eram dias muito especiais pra mim. Havia sofrido pelo gaúcho, dois anos sozinha e, agora, parecia que finalmente tinha reencontrado o amor.

Meu aniversário de 28 anos aconteceu nas margens do Tejo numa janta especial. Só havia eu e ele, um céu bem estrelado e luzes de velas. Acho que foi o melhor aniversário da minha vida. Depois, ele me levou para dançar salsa numa casa de música latina, a única em Lisboa. Bebemos além da conta e o sexo, naquela noite, foi a cereja do bolo. Eu estava completamente entregue, pura, inteira pra ele.

Aí começaram os problemas. Depois do ápice, parece sempre vir o desenlace. Hoje tenho medo de ápices por causa disso. Ele tinha ciúmes dos amigos dele, dizia que eu os estava “encantando”. A pergunta é: como é que isso podia acontecer se eu mal entendia o que eles falavam? Resposta: não acontecia. Era pura insegurança dele. E só a insegurança leva a gente para tantas decisões precipitadas. Comecei a querer fugir.

A despedida foi fria. Nem eu, nem ele nos queríamos mais um perto do outro. Ele me tratava mal, porque tinha ciúmes. Eu tratava ele sem verdade, porque não confiava nele. Havia civilismo, mas não amor. Éramos adultos, mas não apaixonados. Talvez, ele, sim. Eu, certamente, não.

Um mês depois, fiquei sabendo, ele foi pro Brasil. Eram as férias dele e ele tinha me dito que viria pra Argentina. Felizmente, não foi. Em Salvador, conheceu uma menina com quem se casou e vive até hoje. Três anos depois, eu fui pro Brasil, pro Rio Grande do Sul, e lá revi o meu gaúcho, então um vendedor de enciclopédias. João Jorge e eu, agora no Facebook, nos falamos de vez em quando. Longe de nossas casas, essa é a única semelhança que eu posso ver entre nós.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Quando “juntos” não é o mesmo que “eu com ele”



André:

Bom, é isso. Até agora, eu já tive três amores. Tenho ainda. Amor, afinal, não tem botão de desliga. Os três relacionamentos acabaram. Os três amores continuam. Do que terminou há mais tempo é mais fácil lembrar da visão geral e menos de detalhes. Do que terminou há menos tempo, é mais fácil lembrar das coisas pequeninas do dia-a-dia e mais difícil de ter uma visão geral do todo. Do do meio, me fez tão mal que eu prefiro não lembrar nada. Esse que vou contar é o mais antigo e, até agora, o mais duradouro.
Eu conheci o Ivo via internet, num chat de sexo. Marcamos em frente ao Roxy, em Copacabana. Era um dia daqueles com cara de “chove não chove” quando os cariocas parecem não saber o que fazer, pouco acostumados com a chuva. Para mim, que sou paulista, está tudo ótimo. Eu não lembrava, mas ele me contou que marcou o fato de eu ter ido de guarda-chuva, pois “um homem prevenido vale por dois”. (Parênteses: preciso contar que, quando esse dia fez um ano, choveu também e a gente foi pro Roxy com as mesmas roupas e reproduzimos a cena! Inesquecível!) Eu lembro dele, atravessando a rua, pisando em falso e quase torcendo o pé. Eu sorri e a gente, que até então só se conhecia por fotinho fake de msn, se identificou na mesma hora. Conversamos,  nos avaliamos e resolvemos ir lá pra casa. Coisas que acontecem em encontros destinados apenas ao sexo. Na saída, porém, apareceu uma amiga dele e ele me apresentou pra ela com o meu nome falso. Infelizmente, ela não disse o nome verdadeiro dele, e eu só fui ficar sabendo qual era dias depois. No caminho, a gente conversou sobre uns livros que ela, a amiga, estava lendo. Engraçado lembrar disso agora. (Parênteses de novo: O Ivo é até hoje um cara muito fechado, mas, naquele momento, diante da amiga, estava aberto e atencioso em relação a mim, botando a mão no meu braço sempre que chegávamos a uma esquina. Considerando o contexto, foi uma atitude super corajosa a dele.) Lá pelas tantas, nos despedimos da amiga dele finalmente e fomos lá para casa no carro dele que ainda cheirava a novo. A transa foi excelente e teve repetição. Continuamos nos vendo. Ele estava passando por uma fase bem difícil, terminando o mestrado, com crises de ansiedade que todo mundo tem quando está nesse processo. Eu, ainda distante da minha monografia de conclusão da faculdade, tentava ajuda-lo e acho que conseguia.
Acho que já fazia uns dois meses de encontros regulares na minha casa, sempre na minha casa!, quando, depois de uma ótima transa, eu perguntei se éramos namorados. Me senti livre para isso porque a gente jantava juntos aos finais de semana, íamos a exposições e a peças de teatro, estávamos de alguma forma juntos. Diante da pergunta, ele ficou bem desconcertado. Acho que nunca tinha passado pela cabeça dele estar namorando com um homem. Mesmo assim, respondeu um “Acho que sim”. E me avisou: “Mas eu não sou desses namorados que ficam dando presentinhos toda hora, heim?” Uma frase estranha pro meu coraçãozinho sensível, talvez uma maneira dele mostrar o quão difícil pra ele seria ter um namoro tradicional com um alguém do mesmo sexo. Um desafio que, era essa a mensagem, ele estava aceitando a enfrentar.
Ficamos juntos quatro anos e oito meses. Eu terminei a minha faculdade e fiz uma especialização. Ele entrou no doutorado e, quando saiu, já não estávamos mais juntos. Foi um período de convivência, de amizade, de carinho. Lindas fotos, ótimos passeios, muito afeto apesar de tudo.
Informações íntimas, necessárias pra contar o fim dessa história. Entre os homens gays, há gente só ativo, gente só passivo e gente versátil. O Ivo era só ativo e eu só passivo e, por isso, nos dávamos bem naquele início. Mas, com ele, eu aprendi a ser ativo e, durante o relacionamento, tomei gosto pela “coisa”. Estabelecemos, então, para evitar conflitos, um rodízio, que era a forma que encontramos de fluir com isso. (Depois que terminamos nunca mais fui passivo.) A alternativa, porém, pouco a pouco, começou a não satisfazer plenamente nem um, nem outro. O sexo deixou de ser um grande momento para nós, mas isso de todo não foi o pior.
Esse meu primeiro relacionamento terminou por uma necessidade de seguir caminhos diferentes já que não conseguíamos mais caminhar juntos. Eu estava pronto pra sair do armário definitivamente e ele, o Ivo, mal conseguia colocar “um braço pra fora”. Eu já tinha apresentado ele como meu namorado para a minha família, meus colegas de trabalho, para meus amigos. Mas, para os amigos dele, mesmo aqueles com quem eu convivia muito, eu seguia sendo oficialmente apenas o “amigo do Ivo”. (Parêntese/Armário: só “oficialmente”, porque ninguém é bobo, né?). A única pessoa que realmente sabia era a irmã dele. E isso, essa incapacidade dele de, após tanto tempo juntos, não me ver com ele foi me cansando.
A gota d’água, nem sempre necessária para um fim, mas aqui foi o caso, aconteceu quando o Ivo ganhou uma ação na justiça e comprou um apartamento grande. Na empolgação dele, que eu acompanhei de perto, notei que nunca tinha passado pela sua cabeça que nós pudéssemos morar juntos naquele lugar que agora estava sendo decorado, alugando a minha casa, unindo enfim os nossos bens. A mim vieram crises de ansiedade enormes que, no começo, eu não sabia de onde elas vinham, mas, depois de um tanto de terapia, eu consegui compreender o que hoje é está claro pra mim e conto agora aqui nesse encontro. O Ivo, o meu “bicholino” como nós nos chamávamos, via ele próprio e me via, mas não via nós dois.
Separado dele, consegui ser quem eu queria ser ou quem eu já era no fundo há muito tempo. Sair do armário, me libertar finalmente foi planejado por mim com muito carinho e, quando eu alcancei essa realidade, foi bastante especial. É muito bom viver numa época como essa nossa e eu aproveito como posso! Terminar com ele, um dia, num café da Praça General Osório, foi apenas uma conversa para mim. A história, dentro do meu coração, já tinha acabado. Para ele, me parecia, nunca de fato tinha existido.

Troféu



Lúcia:


Eu o conheci em uma empresa que prestava serviço para a qual eu trabalhava. Cabelos loiros, olhos claros, meio tímido e bastante alto. Eu, que ficava excitada quando ele passava perto da minha mesa, logo fiz alguma coisa para me aproximar. Ele falava pouco, mas sorria e era gentil comigo. Tenho a impressão de que a primeira vez que saímos juntos fui eu quem o convidei. Não lembro se ele aceitou, mas lembro, isso faz anos, dele pegando na minha mão e me convidando para outras coisas. Não demorou muito e eu me transformei em plateia dos jogos de vôlei dele com os amigos, encontros com a família dele, essas coisas. Foi rápido e sem grandes momentos. Foi natural, como o amor deve ser. Eu era oito anos mais velha que ele e formada, mas não jogava voley e raras vezes pegaram na minha mão no cinema. Os primeiros meses, assim, foram passando. Depois de quase cinco anos solteira, era maravilhoso vivenciar o amor novamente. E eu sentia que tinha nascido para aqueles momentos, porque era neles que eu me sentia mais eu.

Quando completamos seis meses de namoro mais ou menos, eu sou boa em números, o irmão dele ficou noivo. Hoje, eu acho que isso o fez apressar as coisas e me pedir em noivado também. Era para ser surpresa no dia do meu aniversário, mas acabou não sendo porque a noiva do irmão dele acabou deixando escapar. Mesmo assim, foi emocionante pra mim, pra minha família, pra todos nós. Mal podia acreditar naquela aliança no meu dedo. Era um peso, uma responsabilidade, um troféu que eu, já passada dos trinta, ainda não tinha levantado. Apesar de um certo medo, eu estava feliz. A gente se falava todo o tempo, várias mensagens por dia, era como se um bastasse para o outro e nada mais fosse necessário. Eu gostava de tê-lo por perto, eu gostava de estar perto também. Havia presença constante e tudo parecia estar seguro.

Já ia fazer um ano que eu o conhecia quando algumas pontas começaram a se ligar, detalhes que não fizeram sentido no início, mas que tiveram continuidade depois. Por exemplo, eu só fui descobrir que ele não tinha a idade que tinha me dito, o bairro onde ele realmente morava e que nunca fizera faculdade uns dois meses depois do namoro já ter começado. Nada disso me era importante, porque, afinal de contas, era bom estar com ele. Na semana do vestibular, veio a bomba. Ele, sumido há três dias, terminou comigo por mensagem de texto no celular. O chão sumiu, a segurança se esvaneceu, minha cabeça girou. O choque de lógica surgiu como a única barra segura em que eu podia me segurar. Somei três mais três, uni as mentiras do início com pequenos detalhes do meio e veio o resultado. Por que mentir e por que terminar de um jeito tão frio se eu nunca o havia dado motivos para tanto gelo?

O casamento do irmão dele acabou logo em seguida e, nessa altura, eu já era amiga da recém divorciada. Foi ela quem me contou que ele havia passado na prova e estava cursando faculdade. Não me contentei e fui atrás. Usando meus contatos, eu estudei onze anos na faculdade que ele dizia estudar, descobri que ele numa tinha passado em vestibular algum. Meu sentimento é que meu namoro e meu noivado com ele eram tão vazios e sem sentido quanto a festa de comemoração do vestibular que a família havia feito pra ele.

Fui cuidar da minha vida. Voltei a me envolver com o meu trabalho e comigo mesma. Eu não vou negar que chorei por esta história não ter o fim que eu queria, mas não posso, e nem quero, imaginar o que teria sido a minha vida ao ter que conviver com incertezas desse tamanho todos os dias. E, se me arrependo de algo, é de ter devolvido pra ele a aliança. Hoje, meio empoeirada e sem brilho, ela seria ainda um troféu com a inscrição "antes só do que mal acompanhada".

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Torta de Maçã



Alex:

A gente se conheceu numa balada onde vão gays, vão héteros, vão bis e todo mundo bebe, conversa, dança e não está nem aí pra vida do outro. Eu estava com um amigo, cujo apelido é “Mãe de Santo”, porque todo mundo na festa parece que não passa sem vir cumprimentá-lo. O Marcelo foi um deles e foi assim que ele me foi apresentado. Na hora, eu comentei com o Mãe: “Esse Marcelo é um tesão!” Na verdade, eu não me lembrava disso, eu já o conhecia. Na noite interior, o Mãe e eu tínhamos ido na festa de despedida de um cara. Marcelo estava lá e nós nos falamos um pouco. Como a festa essa estava chata, e eu estava entediado, fui embora logo. Mas, no dia seguinte, fui direto deixando claro pro Marcelo quais eram as minhas intenções. Eu não me considero um cara muito charmoso. Há quem diga, aliás, que meu sex appeal é zero. E pode até ser que sim, não duvido, já que minha tosca e agropecuária forma de conquistar o Marcelo não deu em nada naquele início de noite. De repente, eu não sou vaidoso, ele disse que tinha que ir no banheiro e eu entendi o que isso queria dizer. Tempo depois, me avisa o Mãe: “Não olha praquele lado de lá!” E eu devolvi: “Já vi!” Naquele lado de lá, o Marcelo estava aos beijos com um médico da marinha. O Mãe conhecia todo mundo. As horas foram passando e eu já tinha me dado por vencido naquele noite, quando, do nada, reaparece o Marcelo, sorridente e lindo, como nada tivesse acontecido no intervalo de, sei lá, meia hora. Voltou dessa vez, para o meu prazer, correspondendo, todo em olhares para mim. Eu já disse que não sou vaidoso, então, começamos a ficar e a festa mudava de cor (pelo menos, para nós). Me equilibrando na ponta dos pés, eu sou bem mais baixo que e o Marcelo, dois momentos são muito claros naquela madrugada: eu, por algum motivo, com uma tara nunca antes sentida, passei o tempo todo brincando com o dedo no umbigo dele, passando a mão por baixo da camisa de botão que ele vestia. A outra lembrança sou eu beliscando o Mãe, que estava na mesma parede que nós, ao nosso lado, aos beijos que uma bichinha vestibulanda, todas sempre loucas por ele.
            No fim da noite, convidei o Marcelo pra vir pra minha casa. A princípio, ele não queria vir. Tinha vergonha de ir pra casa de alguém desconhecido, mas aceitou quando eu disse que tinha feito uma torta de maçã, a preferida dele como me contou. Meses depois, me revelou que, na verdade, aceitou vir por causa da minha cara de pau em convidá-lo, assim, de supetão... Chegando em casa, Marcelo ganhou muitos pontos comigo ao pedir para tomar banho. A transa, que aconteceu imediatamente depois, foi maravilhosa. A segunda, que rolou quando acordamos, melhor ainda. Já era domingo e, depois de comer a torta de maçã, que era de verdade!, fomos caminhar na praia e lá ele pegou na minha mão e me deu um beijo! Naquele momento, brilharam umas estrelinhas que ainda brilham quando lembro desse momento. O Marcelo era tudo que eu procurava!
O namoro realmente começou umas duas semanas mais tarde. O Marcelo se formou em Farmácia e, na formatura, me apresentou para todos os amigos dele. A gente se beijou na frente de todos que viram, com olhos arregalados, eu brincar livremente no umbigo dele já, nesse momento, um hábito comum para nós. Me lembro muito bem da primeira vez que a palavra namoro apareceu com todas as letras. O Marcelo havia sugerido o nome intermediário de “romance” e eu adorei a proposta no começo. Um dia, eu estava deitado sobre ele, ele balançando a cabeça pra lá e para cá de olhos fechados enquanto eu beijava o pescoço, a boca, a bochecha, os olhos, a orelha, o cabelo e dizendo “meu lindo”, que era como nós nos chamávamos. Foi, então, que eu deixei escapar: “Meu namorado lindo!”. Ele abriu os olhos, ficamos alguns segundos nos olhando e, então, nos demos um beijo inesquecível.
Durou quase dois anos (um ano e onze meses) e terminou por pura falta de afinidade na vida prática, já que, na vida afetiva, nada faltava. Nem sei se existe mesmo essa divisão... Eu não saberia dizer exatamente quais são os contornos. Mas sei que eu e o Marcelo não conseguíamos nos entender sobre pequenas coisas, não tínhamos nenhum hobbie em comum, e, muito explosivo, ele me ofendia muito, mesmo que, depois, me pedisse desculpas. Eu fazia os programas dele com carinho e, é verdade, ele fazia os meus com carinho também, mas não tínhamos nenhum programa que pudesse ser chamado de Nosso, mesmo depois de mais de um ano de relacionamento. Era inevitável que, mais cedo ou mais tarde, começassem os desentendimentos e esses cada vez mais sérios. Na minha opinião, afinidade e gostos comuns são obrigatórios na vida a dois. Essenciais.
Terminou e, eu não quero falar disso, em meio a uma briga por algum motivo fútil. Aos berros, ele me jogou uma raiva da qual eu já estava cansado e saiu batendo a porta com força. Quando me ligou, eu não atendi. Ligou mais dois dias e eu não atendi. Três dias depois, eu mandei uma mensagem dizendo eu o namoro havia terminado. Uma semana depois da briga, organizei as coisas dele sobre a cama do meu quarto de hóspedes e, enquanto eu estava no trabalho, ele veio buscá-las. A zeladora do prédio me contou que ele chorou abraçado nela. Dez dias depois disso, marquei um café, mas ele não apareceu. Com raiva de mim, nunca mais me procurou. E foi pela raiva sentida por ele que tudo terminou.
Esse foi meu segundo relacionamento: muito tesão, muito contraste, desafio constante e cansante. Sinto muita falta dele, mas vai passar. 

Comendo a carne onde ganhava o pão


Marta:

É claro que eu já conhecia ele, mas só fui realmente prestar a atenção quando tive que ir até a sua empresa pra pedir emprego. Ou melhor, oferecer meus serviços. Meus serviços profissionais que fique esclarecido. A ideia tinha sido de um amigo em comum. Um vizinho, na verdade. Ok, um ex-caso. Odeio tantas sinceridades, mas tudo bem. Hoje é dia de abrir o jogo e rever essa história toda. Toda. Tirar o mofo, sabe como é? Toda. Liguei pra ele, combinamos, agendamos, marcamos, me organizei. E me frustrei como em noventa por cento das vezes em que eu crio expectativas. E sempre crio, quem não? Ele não estava lá. Houve, então, outro dia. Nem sempre há segundas oportunidades, mas, dessa vez, sim. Em nosso primeiro encontro, a segunda oportunidade, eu lembro que ele fazia muitas perguntas sobre o meu namorado. Quer dizer, ex. Naquele tempo, o César já era o meu ex. O Rodrigo, esse é o nome dele, deveria ser meu futuro chefe. Por que saber sobre o César?! Por destino ou não, até hoje não sei, o César voltou a ser o meu atual e o Rodrigo acabou não sendo o meu chefe naquela ocasião. Tempos depois, quando César virou nova e derradeiramente meu ex, eu encontrei o Rodrigo andarilhando na quadra da minha casa. Era, enfim, a vez de o futuro chegar e ele ser o meu tão esperado, mas não somente, chefe.

Conversa na rua. Meu bairro é pequeno e afastado do centro, com paralelepípedos e sem placas indicando os nomes das vias mais nossas do que públicas. Estava escuro, anoitecia e gelava. Depois das informações que ajudaram o Rodrigo perdido, o tema profissional voltou. E, assim, ele ficou sendo meu chefe. Perguntou se eu já tinha jantado e me levou, naquela noite, para comer alguma coisa ali perto. O jantar deu lugar a um passeio longo de carro pela cidade e uma ótima conversa. Quando desci, na porta da rua de paralelepípedos, agradeci feliz por aqueles momentos. Não demorou muito para que houvesse outros.

Não lembro bem quando foi o primeiro beijo, mas sei que ele aconteceu quando eu já estava apaixonada e quando eu ainda não sabia que ele já tinha namorada. Eu tinha sentimentos, mas não tinha noção do que fazer com eles. Eu nunca fui boa em cuidar do coração que, aliás, sempre me pareceu meio selvagem demais. Encolhido dentro de um túnel, manso, quieto e, de repente, avassalador e perigoso. Havia o trabalho e havia o amor, mas não havia moral nem tampouco ética. E muito menos um César que me deixasse empatado com o Rodrigo. De qualquer forma, eu comia a carne onde ganhava o pão com menos culpa do que eu achava que deveria ter. O Rodrigo me surpreendia sempre. Falava de coisas que eu pouco entendia e, ao mesmo tempo, contava seus segredos, suas inseguranças, tentava sempre achar algo em comum nas coisas que eu contava pra ele. Sem que eu soubesse que isso estava acontecendo, a habilidade dele estava em me fazer ser sua amiga, além de sua amante. Amantes vão embora com muito choro. Amigos vão embora com muitas lembranças. Lembranças pesam bem mais que choros. Ele vencia sempre.

Fizemos juntos coisas inusitadas: passeios de barco, banhos de banheira à luz do dia, tardes na cama. Histórias que sempre fazem você crer que tudo vai demorar pra acabar ou não acabar nunca. Mas, nessa historia, existia a Outra.

Fui buscar ajuda. Longos, muitos e caros anos de terapia falando dele. Anos depois, quando já não trabalhávamos mais juntos, Rodrigo me enviou um novo convite, uma nova proposta de trabalho aparentemente inofensiva, mas com um terrível “saudades” escrito no final do email. A Outra ainda existia, mas já era Outra-Outra e não aquela Outra de antes. A Outra de agora era Noiva. E o convite de agora me serviu para testar uma volta por cima. Aceitei.

Tudo parecia estar dando certo e, apesar da cumplicidade, ele não tocava em nosso passado e nem eu. Assim, nesse meio tempo de trabalho, dividindo a mesma sala, escrivaninha ao lado de escrivaninha e só os computadores interligados em rede, a amizade voltou e foi ficando maior. Não me senti ofendida quando todos foram convidados para o casamento dele menos eu. Ao contrário, me senti orgulhosa. Havia um motivo que justificasse o não-convite. O problema dos casamentos, e chorei quando me dei conta disso, é que, depois que a festa terminou, ele não voltou pra casa dele, mas foi pra casa deles. E eu o amava e, graças à terapia, me amava também pra aceitar aquilo numa boa.

O tempo passou, a poeira baixou e o casamento dele continuou. O meu nunca aconteceu e o César eu nunca mais o vi. No trabalho, a trabalho, houve outra viagem e lá fomos Rodrigo e eu, eu com ele. Voltaram as lembranças das primeiras viagens, a história batendo na porta e querendo ganhar continuidade de novo, o fogo reascendeu por mais brega que isso possa ser. Ficamos juntos, eu sei que vocês esperavam por isso. A diferença é que, naquele momento, com o Rodrigo casado, eu já imaginava que não haveria futuro e isso me fazia acreditar que eu estava mais forte. Na viagem, as delicadezas, os cafés da manhã, os passeios de mãos dadas, ele abrindo garrafas de vinho e nós dois escolhendo juntos os presentes para a minha mãe e meu pai que, naquele final de semana, faziam aniversário de casamento. Os dias seguintes, porém, foram sucedidos por dolorosos. Além do tempo, eu tinha jogado fora os longos e caros anos de terapia. E a mim mesmo.

Não foi nada fácil tomar a atitude que eu tomei. Sumi. Desapareci. Voltei pra casa, pra minha casa, pra mim mesmo que era onde eu parecia não morar há um bom tempo. Fiquei muitos anos sem ter notícias. Fiquei muitos anos sem dar notícias. Não nos vimos mais nem pelas ruas da cidade que dizem ser pequena.

Dez anos depois, ele me ligou para saber de mim. Dez anos. Nos falamos, marcamos um encontro profissional, mas eu não fui. Na última vez em trocamos emails, ele me convidou para fazer uma visita ao novo escritório dele. Não fui também. Nossa história existe e ela não foi forte o suficiente para impedir que a relação terminasse. E eu só não quero mais nenhum recomeço. Tenho imensa capacidade de amar e sou orgulhosa de ter tido a coragem de tê-lo feito. Mas o ponto final tem aqui a sua serventia.

domingo, 5 de agosto de 2012

Porto Alegre



Luis:

Primeiro encontro. Porto Alegre tem as melhores baladas do Brasil. Você conhece todo mundo, mas todo mundo finge que não te conhece. Eis os gaúchos. Lá estava eu, sozinho como não me importa estar, escorado numa parede quando ele passou. Eu resolvi que era hora de mudar a abordagem na noite e não estava mais convidando ninguém pra ir para a minha casa, mesmo tendo sido bom. Ele passou. A gente se olhou. Nos pegamos. Tinha sido bom. Mas eu não levei “lanchinho” pra casa aquela noite. Mantive a decisão, pois, se é pra ser teimoso, que eu seja comigo mesmo. Ou cagão. Enfim. Ele era 18 anos mais novo. Resolvi curtir a noite ali e era isso. Só. Trocamos celular, mas não liguei. Nem ele. Claro. Porto Alegre tem as melhores baladas do Brasil.

Segundo encontro. Eu estava no Cabaret, a balada menos pior de Porto Alegre, a cidade que tem as piores baladas do Brasil. O tempo tinha passado, como não me importa quando acontece. Então, ele chegou. Eu o vi descer as escadas, as famosas escadas que viram tobogã quando o pessoal fica bêbado. Fingi que não vi. Todo mundo finge que não vê. Eis os gaúchos. Eis eu. Mas ele me viu e veio direto na minha direção! Ponto de Exclamação. E a gente ficou ali, curtindo e falando bobagenzinhas. Porto Alegre tem as piores baladas do Brasil, mas sempre pode ficar menos pior.

Terceiro encontro. “Agasan” me convidou para ir no Vitreaux no domingo à noite. O nome artista da pessoa é porque ele é quer ser cantor. Ou é. O nome phyno do lugar é porque ele quer parecer de nível. Mas não é MESMO. Eu resolvi ir, porque, afinal, não trabalho de manhã e foda-se a classe média. Fomos a pé, conversando sobre o ep que o “Agasalhan” ia gravar, ou estava gravando, sei lá. No caminho, ele fazia cantorias com voz aguda. Meldeuz. Chegando lá, fui ao banheiro e, na saída, quem eu encontro? Júlio, de bermuda, tênis e camiseta, vindo da tarde no Parque da Redenção. Sei... Começamos a conversar, começamos a nos abraçar e recomeçamos a nos beijar. Sabe? Acabamos a noite no banheiro, com as calças abaixadas. Fodam-se os moralistas e foda-se Porto Alegre também. Esqueci “Asagan”, que depois ficou magoadíssimo comigo por ter sido abandonado.

Quarto encontro. Véspera de feriado de 21 de abril. Fui no Venezianos, o mesmo lugar onde tinha ido na primeira vez. Porto Alegre tem a menor balada do Brasil. A fila era imensa, “Alacasan” apareceu e entramos juntos. Muita gente. Pouco espaço. Júlio estava lá, com amigos. Sei... Fingi que não vi. Aquelas coisas. Mas, depois de um tempo, me aproximei, puxei ele pra mim, eu sou irresistível. Dançamos e subimos para o andar de cima, ainda menor do que o andar de baixo. Tem mesas, dá pra conversar.  Um cara sentou na nossa mesa e não queria mais sair. Tive que engrossar! Olhares with lasers, ele se mandou, eu sou repulsivo. Júlio e eu, nesta noite, saímos juntos da festa e viemos aqui para minha casa. Minha abordagem já era outra. E estava dando certo.

Outros encontros. Daí em diante, começamos a nos ver semanalmente. Marcamos de ir numa projeção de vídeos que ia acontecer na Av. Osvaldo Aranha, em um estacionamento. Não lembro qual era a temática, porque acabamos atravessando o parque e indo comer pizza no “Sabor em Fatias”, “Pizza em pedaços”, “Fatias e pedaços”, eu não sou bom para nomes artísticos. Nem Porto Alegre. Bebemos bastante e conversamos muito e viemos aqui pra casa. Na primeira vez que ele veio direto para cá, sem que a gente tivesse se encontrado em algum outro lugar antes, eu fiz penne com molho de tomate e parmesão e comemos na cama. Foi no oitavo encontro? Não sei mais... Chegamos a ir no Dr. Jekyll, na Casa do Lado, no Wandabar, no Ocidente, no Laika, na Refúgius, no Cine-Theatro, no Bar do Beto, no Pedrini, no Cerillo, no cinema  (“Namorados para Sempre”, horrível!), no Muffuletta, no Boca Loka, no Mr. Magoo, no “Acasalan”, e, de volta ao Cabaret. Lá, ele bebeu demais e queria engrossar com uma menina espaçosa. (Esse é o pior defeito das meninas que freqüentam o Cabaret.) De lugar em lugar, dia depois do outro, íamos indo casa aqui, programas acolá. Construindo histórias e eu achava que as histórias poderiam fazer tudo demorar mais para terminar. Ou não terminar. Porto Alegre é a cidade mais bonita do mundo na primavera. A editora em que ele trabalhava teve um stand na Feira do Livro daquele ano. Ele saia de lá e vinha para cá. Me deu um livro de receitas de presente com a dedicatória: "Para o único mais orelhudo que eu". Eu chamava ele de orelhudo, porque ele imitava um babuíno, fazendo um bico!

Véspera de natal. Tivemos uma conversa. Ele me disse que gostava do que tínhamos, mas que não estava mais tão empolgado como no começo, e que não sabia o que fazer.  Ficamos juntos, tomamos um chopp no bar da esquina à tardinha e nos despedimos no viaduto Otavio Rocha sobre a Borges. Um viaduto é um bom lugar para despedidas. Uma rua vai para um lado, a outra vai para o outro. Porto Alegre não é tão pequena quanto se imagina. Na festa de natal, naquela noite, no Astro Club, eu roubei um beijo dele. Ele retribuiu. Mas já tinha acabado. Nesta noite, beijei mais quatro. Porto Alegre tem bicha demais. E eu precisava rever minha abordagem.

sábado, 4 de agosto de 2012

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Cris:
Ele é o melhor amigo do marido da minha irmã. Três anos antes de ele vir pela primeira vez ao Brasil, a Lu, que é minha irmã, o conheceu quando foi a Espanha. Na volta, ela comentou comigo: “Cris, conheci lá um cara que é o número que você calça!” Eu desdenhei. Na porta dos cinqüenta anos, a gente desdenha mesmo de qualquer coisa. Aquele papo, eu desdenharia mesmo se tivesse vinte. Morando lá do outro lado do oceano, eu me apaixonaria só se tivesse quinze. Treze talvez. Bem, aí não importaria se fosse o número que eu calçasse. Acho que eu me apaixonaria igual! (risos). Os meses foram passando. Meu pé continuou calçando o mesmo número, diferente das minhas duas filhas que foram aumentando de tamanho e trocando de sapato. Três anos depois, minha irmã me liga: “Vem jantar aqui sexta. Aquele amigo do Edu que mora na Espanha chega quinta no Brasil.” Forçou a barra, insistiu, encheu o meu saco. Fui. Fui sem saber que esse cara era o cara que calçava o meu número. Eu, aliás, já nem lembrava disso. Conheci enfim o amigo do meu cunhado. Nada demais. Contatos sem grandes importâncias. Sem grandes importâncias naquela hora. Depois, ficou importantíssimo. Como são as coisas, não? Dias depois, véspera do dito cujo ir embora: no Rio de Janeiro, tem turista chegando todo dia e voltando pra casa também. Confesso. Esse não era mais um. Afinal, por que eu também iria na janta de despedida se ele fosse apenas mais um? Fui. Ele ainda não  falava português mesmo depois de três semanas no Brasil. Português não é para qualquer um. Brasileira também não, que fique claro.  Eu não falava Espanhol. Eu não sou qualquer uma. De qualquer forma, ficamos conversando noite a dentro. Eu não sou qualquer uma. De qualquer forma, ao amanhecer, ele indo para o aeroporto, andamos de mãos dadas e nos demos um beijo. Eu não sou qualquer uma. Eu vou fazer cinqüenta anos daqui a pouco e me apaixonei. Tudo certinho, tudo mágico como se a gente tivesse só se reencontrado. Só se reencontrando. Era inexplicável, mas real. Real naquele momento, naquela hora. Depois, ficou irreal. Irrealíssimo. Fui pra casa, cantando musicais. Não chovia, but I estava singing in the rain mesmo assim. Feliz. Confiante. Mandei um email de casa. Em São Paulo ainda, ele abriu e respondeu. Ao chegar na Espanha, mandou outro. Descobrimos o messenger, o skype, o viber. Nessa altura, eu já sabia que ele era o tal cara que a minha irmã tinha conhecido três anos antes. O tal que calçava o meu número. Encontros diários, muitas horas na frente do computador. Incrível como a presença virtual consegue ser mais real do que a real. Meses. Minhas filhas trocando de sapato, eu trocando de computador com internet mais feliz, digo, veloz. Em abril, fui pra Espanha. Quatro semanas: todo o sul. Se Andalucia viu algum casal mais feliz, não me contem. Quero continuar com essa ilusão. Lugares especiais pra ele, a família dele, a praia dele da infância. Dormimos num castelo, compartilhamos lembranças. Fizemos história e acreditamos que isso é o que poderia fazer nossa história demorar mais tempo para acabar. Intimidade, confiança, brincadeiras, coisas simples. Recolher o lixo, lavar a louça, colocar a mesa, harmonia, paz. Meu aniversário de 45 anos foi em Sevilha. Meus vinte ou quinze ou trezes não me importam. Antes de sairmos de casa, um pequeno sarau me esperava com músicas que ele ensaiou durante meses para mim. Arrumado, perfumado, num pequeno espaço na casa dele preparado para isso. Ele tocou piano, violão, gaita, acordeon. Músicas muito especiais pra nós. Muito especiais naquela hora. Depois, especialíssimas! Minha alma, preciso dizer?, estava acalentada. Os filhos dele gostaram de mim, houve entrega imediata, simples, fácil, simples. O amor é mesmo fácil, corre ao natural e é preciso deixa-lo correr mesmo que ele corra mais rápido do que nós e para fora, para longe. Deixa correr. Naquele momento, ele caminhava ao meu lado, o amor estava no nosso ritmo. Naquele momento. Depois... Depois, eu voltei ao Brasil. Tinha conhecido o amor da minha vida, aquele definitivo, para ficar, para envelhecer, para ser feliz, para conviver que é além de viver. Voltei ficando lá. Ele veio ficando lá. Volta a internet: messenger, skype, facebook, viber. Já tinha viber naquele tempo? Duas ou três horas por dia, tentando encaixar fusos horários. Eu ia dormir muito tarde, ele acordando de madrugada. Desgaste, mas era o momento mais especial do dia. Ele veio ainda duas vezes ao Brasil e, na segunda, com os filhos. Ficaram todos na minha casa. Aí comecei a sentir nele o medo, uma insegurança, uma fragilidade que, até então, eu não tinha sentido ou notado, quiçá existido. O amor real foi correndo demais e o medo foi ficando na poeira levantada. A estrada parecia sem saída. Talvez, estava muito difícil correr com aquele sapato, calçando aquele número. Eram as minhas filhas, os filhos dele, nós. Pesava. O medo de sofrer, ou de continuar sofrendo, fez ele terminar tudo. Por email. A convida obrigou o retorno da apenas vida. Vida apenas. E não me parecia muito, não me parecia o suficiente pelo menos. Enfim, escolhas. A mim, coube aceitar a perda e dar a isso uma razão, um sentido. O gesto esse é o único meio de fazer a gente sair desse abandono, depois que o amor correu muito rápido para longe de nós. Para longe, para fora. Deixe-mo-lo. De vez em quando, o filho mais velho dele e eu trocamos email, trocas de carinhos ainda. Hoje já não dói mais. Ficou a gratidão de ter conhecido esse sentimento e isso é maior do que ausência dele na minha vida. Tenho imensa capacidade de amar. O improvável aconteceu comigo uma vez. Quem sabe aconteça de novo? Aos poucos, a paisagem vai ganhando novas cores, outros contornos. Ele, afinal, não calçava 36.