sábado, 4 de agosto de 2012

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Cris:
Ele é o melhor amigo do marido da minha irmã. Três anos antes de ele vir pela primeira vez ao Brasil, a Lu, que é minha irmã, o conheceu quando foi a Espanha. Na volta, ela comentou comigo: “Cris, conheci lá um cara que é o número que você calça!” Eu desdenhei. Na porta dos cinqüenta anos, a gente desdenha mesmo de qualquer coisa. Aquele papo, eu desdenharia mesmo se tivesse vinte. Morando lá do outro lado do oceano, eu me apaixonaria só se tivesse quinze. Treze talvez. Bem, aí não importaria se fosse o número que eu calçasse. Acho que eu me apaixonaria igual! (risos). Os meses foram passando. Meu pé continuou calçando o mesmo número, diferente das minhas duas filhas que foram aumentando de tamanho e trocando de sapato. Três anos depois, minha irmã me liga: “Vem jantar aqui sexta. Aquele amigo do Edu que mora na Espanha chega quinta no Brasil.” Forçou a barra, insistiu, encheu o meu saco. Fui. Fui sem saber que esse cara era o cara que calçava o meu número. Eu, aliás, já nem lembrava disso. Conheci enfim o amigo do meu cunhado. Nada demais. Contatos sem grandes importâncias. Sem grandes importâncias naquela hora. Depois, ficou importantíssimo. Como são as coisas, não? Dias depois, véspera do dito cujo ir embora: no Rio de Janeiro, tem turista chegando todo dia e voltando pra casa também. Confesso. Esse não era mais um. Afinal, por que eu também iria na janta de despedida se ele fosse apenas mais um? Fui. Ele ainda não  falava português mesmo depois de três semanas no Brasil. Português não é para qualquer um. Brasileira também não, que fique claro.  Eu não falava Espanhol. Eu não sou qualquer uma. De qualquer forma, ficamos conversando noite a dentro. Eu não sou qualquer uma. De qualquer forma, ao amanhecer, ele indo para o aeroporto, andamos de mãos dadas e nos demos um beijo. Eu não sou qualquer uma. Eu vou fazer cinqüenta anos daqui a pouco e me apaixonei. Tudo certinho, tudo mágico como se a gente tivesse só se reencontrado. Só se reencontrando. Era inexplicável, mas real. Real naquele momento, naquela hora. Depois, ficou irreal. Irrealíssimo. Fui pra casa, cantando musicais. Não chovia, but I estava singing in the rain mesmo assim. Feliz. Confiante. Mandei um email de casa. Em São Paulo ainda, ele abriu e respondeu. Ao chegar na Espanha, mandou outro. Descobrimos o messenger, o skype, o viber. Nessa altura, eu já sabia que ele era o tal cara que a minha irmã tinha conhecido três anos antes. O tal que calçava o meu número. Encontros diários, muitas horas na frente do computador. Incrível como a presença virtual consegue ser mais real do que a real. Meses. Minhas filhas trocando de sapato, eu trocando de computador com internet mais feliz, digo, veloz. Em abril, fui pra Espanha. Quatro semanas: todo o sul. Se Andalucia viu algum casal mais feliz, não me contem. Quero continuar com essa ilusão. Lugares especiais pra ele, a família dele, a praia dele da infância. Dormimos num castelo, compartilhamos lembranças. Fizemos história e acreditamos que isso é o que poderia fazer nossa história demorar mais tempo para acabar. Intimidade, confiança, brincadeiras, coisas simples. Recolher o lixo, lavar a louça, colocar a mesa, harmonia, paz. Meu aniversário de 45 anos foi em Sevilha. Meus vinte ou quinze ou trezes não me importam. Antes de sairmos de casa, um pequeno sarau me esperava com músicas que ele ensaiou durante meses para mim. Arrumado, perfumado, num pequeno espaço na casa dele preparado para isso. Ele tocou piano, violão, gaita, acordeon. Músicas muito especiais pra nós. Muito especiais naquela hora. Depois, especialíssimas! Minha alma, preciso dizer?, estava acalentada. Os filhos dele gostaram de mim, houve entrega imediata, simples, fácil, simples. O amor é mesmo fácil, corre ao natural e é preciso deixa-lo correr mesmo que ele corra mais rápido do que nós e para fora, para longe. Deixa correr. Naquele momento, ele caminhava ao meu lado, o amor estava no nosso ritmo. Naquele momento. Depois... Depois, eu voltei ao Brasil. Tinha conhecido o amor da minha vida, aquele definitivo, para ficar, para envelhecer, para ser feliz, para conviver que é além de viver. Voltei ficando lá. Ele veio ficando lá. Volta a internet: messenger, skype, facebook, viber. Já tinha viber naquele tempo? Duas ou três horas por dia, tentando encaixar fusos horários. Eu ia dormir muito tarde, ele acordando de madrugada. Desgaste, mas era o momento mais especial do dia. Ele veio ainda duas vezes ao Brasil e, na segunda, com os filhos. Ficaram todos na minha casa. Aí comecei a sentir nele o medo, uma insegurança, uma fragilidade que, até então, eu não tinha sentido ou notado, quiçá existido. O amor real foi correndo demais e o medo foi ficando na poeira levantada. A estrada parecia sem saída. Talvez, estava muito difícil correr com aquele sapato, calçando aquele número. Eram as minhas filhas, os filhos dele, nós. Pesava. O medo de sofrer, ou de continuar sofrendo, fez ele terminar tudo. Por email. A convida obrigou o retorno da apenas vida. Vida apenas. E não me parecia muito, não me parecia o suficiente pelo menos. Enfim, escolhas. A mim, coube aceitar a perda e dar a isso uma razão, um sentido. O gesto esse é o único meio de fazer a gente sair desse abandono, depois que o amor correu muito rápido para longe de nós. Para longe, para fora. Deixe-mo-lo. De vez em quando, o filho mais velho dele e eu trocamos email, trocas de carinhos ainda. Hoje já não dói mais. Ficou a gratidão de ter conhecido esse sentimento e isso é maior do que ausência dele na minha vida. Tenho imensa capacidade de amar. O improvável aconteceu comigo uma vez. Quem sabe aconteça de novo? Aos poucos, a paisagem vai ganhando novas cores, outros contornos. Ele, afinal, não calçava 36.

Um comentário:

  1. Um oceano separa! A vida é linda! Estes encontros, são mágicos!

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