segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Comendo a carne onde ganhava o pão


Marta:

É claro que eu já conhecia ele, mas só fui realmente prestar a atenção quando tive que ir até a sua empresa pra pedir emprego. Ou melhor, oferecer meus serviços. Meus serviços profissionais que fique esclarecido. A ideia tinha sido de um amigo em comum. Um vizinho, na verdade. Ok, um ex-caso. Odeio tantas sinceridades, mas tudo bem. Hoje é dia de abrir o jogo e rever essa história toda. Toda. Tirar o mofo, sabe como é? Toda. Liguei pra ele, combinamos, agendamos, marcamos, me organizei. E me frustrei como em noventa por cento das vezes em que eu crio expectativas. E sempre crio, quem não? Ele não estava lá. Houve, então, outro dia. Nem sempre há segundas oportunidades, mas, dessa vez, sim. Em nosso primeiro encontro, a segunda oportunidade, eu lembro que ele fazia muitas perguntas sobre o meu namorado. Quer dizer, ex. Naquele tempo, o César já era o meu ex. O Rodrigo, esse é o nome dele, deveria ser meu futuro chefe. Por que saber sobre o César?! Por destino ou não, até hoje não sei, o César voltou a ser o meu atual e o Rodrigo acabou não sendo o meu chefe naquela ocasião. Tempos depois, quando César virou nova e derradeiramente meu ex, eu encontrei o Rodrigo andarilhando na quadra da minha casa. Era, enfim, a vez de o futuro chegar e ele ser o meu tão esperado, mas não somente, chefe.

Conversa na rua. Meu bairro é pequeno e afastado do centro, com paralelepípedos e sem placas indicando os nomes das vias mais nossas do que públicas. Estava escuro, anoitecia e gelava. Depois das informações que ajudaram o Rodrigo perdido, o tema profissional voltou. E, assim, ele ficou sendo meu chefe. Perguntou se eu já tinha jantado e me levou, naquela noite, para comer alguma coisa ali perto. O jantar deu lugar a um passeio longo de carro pela cidade e uma ótima conversa. Quando desci, na porta da rua de paralelepípedos, agradeci feliz por aqueles momentos. Não demorou muito para que houvesse outros.

Não lembro bem quando foi o primeiro beijo, mas sei que ele aconteceu quando eu já estava apaixonada e quando eu ainda não sabia que ele já tinha namorada. Eu tinha sentimentos, mas não tinha noção do que fazer com eles. Eu nunca fui boa em cuidar do coração que, aliás, sempre me pareceu meio selvagem demais. Encolhido dentro de um túnel, manso, quieto e, de repente, avassalador e perigoso. Havia o trabalho e havia o amor, mas não havia moral nem tampouco ética. E muito menos um César que me deixasse empatado com o Rodrigo. De qualquer forma, eu comia a carne onde ganhava o pão com menos culpa do que eu achava que deveria ter. O Rodrigo me surpreendia sempre. Falava de coisas que eu pouco entendia e, ao mesmo tempo, contava seus segredos, suas inseguranças, tentava sempre achar algo em comum nas coisas que eu contava pra ele. Sem que eu soubesse que isso estava acontecendo, a habilidade dele estava em me fazer ser sua amiga, além de sua amante. Amantes vão embora com muito choro. Amigos vão embora com muitas lembranças. Lembranças pesam bem mais que choros. Ele vencia sempre.

Fizemos juntos coisas inusitadas: passeios de barco, banhos de banheira à luz do dia, tardes na cama. Histórias que sempre fazem você crer que tudo vai demorar pra acabar ou não acabar nunca. Mas, nessa historia, existia a Outra.

Fui buscar ajuda. Longos, muitos e caros anos de terapia falando dele. Anos depois, quando já não trabalhávamos mais juntos, Rodrigo me enviou um novo convite, uma nova proposta de trabalho aparentemente inofensiva, mas com um terrível “saudades” escrito no final do email. A Outra ainda existia, mas já era Outra-Outra e não aquela Outra de antes. A Outra de agora era Noiva. E o convite de agora me serviu para testar uma volta por cima. Aceitei.

Tudo parecia estar dando certo e, apesar da cumplicidade, ele não tocava em nosso passado e nem eu. Assim, nesse meio tempo de trabalho, dividindo a mesma sala, escrivaninha ao lado de escrivaninha e só os computadores interligados em rede, a amizade voltou e foi ficando maior. Não me senti ofendida quando todos foram convidados para o casamento dele menos eu. Ao contrário, me senti orgulhosa. Havia um motivo que justificasse o não-convite. O problema dos casamentos, e chorei quando me dei conta disso, é que, depois que a festa terminou, ele não voltou pra casa dele, mas foi pra casa deles. E eu o amava e, graças à terapia, me amava também pra aceitar aquilo numa boa.

O tempo passou, a poeira baixou e o casamento dele continuou. O meu nunca aconteceu e o César eu nunca mais o vi. No trabalho, a trabalho, houve outra viagem e lá fomos Rodrigo e eu, eu com ele. Voltaram as lembranças das primeiras viagens, a história batendo na porta e querendo ganhar continuidade de novo, o fogo reascendeu por mais brega que isso possa ser. Ficamos juntos, eu sei que vocês esperavam por isso. A diferença é que, naquele momento, com o Rodrigo casado, eu já imaginava que não haveria futuro e isso me fazia acreditar que eu estava mais forte. Na viagem, as delicadezas, os cafés da manhã, os passeios de mãos dadas, ele abrindo garrafas de vinho e nós dois escolhendo juntos os presentes para a minha mãe e meu pai que, naquele final de semana, faziam aniversário de casamento. Os dias seguintes, porém, foram sucedidos por dolorosos. Além do tempo, eu tinha jogado fora os longos e caros anos de terapia. E a mim mesmo.

Não foi nada fácil tomar a atitude que eu tomei. Sumi. Desapareci. Voltei pra casa, pra minha casa, pra mim mesmo que era onde eu parecia não morar há um bom tempo. Fiquei muitos anos sem ter notícias. Fiquei muitos anos sem dar notícias. Não nos vimos mais nem pelas ruas da cidade que dizem ser pequena.

Dez anos depois, ele me ligou para saber de mim. Dez anos. Nos falamos, marcamos um encontro profissional, mas eu não fui. Na última vez em trocamos emails, ele me convidou para fazer uma visita ao novo escritório dele. Não fui também. Nossa história existe e ela não foi forte o suficiente para impedir que a relação terminasse. E eu só não quero mais nenhum recomeço. Tenho imensa capacidade de amar e sou orgulhosa de ter tido a coragem de tê-lo feito. Mas o ponto final tem aqui a sua serventia.

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